sábado, 10 de agosto de 2019

Brian Auger & The Trinity - Listen Here

Hoje em dia julgo que se ouve menos rádio do que na minha adolescência. Deixou-se de ouvir rádio porque ela ser mais fraca, ou ficou mais fraca por se ouvir menos? ou estou simplesmente equivocado? É certo que tudo mudou na vida, o tempo disponível é menor, a juventude e não só, todos nós, temos a Internet e os leitores de MP3.

Nem sempre foi assim, em pequeno tinha o bom hábito de ouvir rádio, os relatos de futebol, está claro, com o “transístor” na orelha, mas também programas, genericamente musicais, pois, nessa altura a programação era sobretudo musical. De entre os muito bons programas que existiram na nossa rádio desde os anos 60, há um que se destacou, pela sua qualidade, irreverência, bom gosto musical e que marcou toda uma geração, refiro-me ao programa “Em Órbita” que teve início no ano de 1965 em FM na RCP (Rádio Clube Português). A escrita deste texto baseia-se em parte na minha memória, outra parte em pesquisa feita na Internet.
Num país governado por uma ditadura, de costumes ultra conservadores, o “Em Órbita” atreveu-se, intransigentemente, a passar o que melhor se fazia na nova música popular anglo-saxónica, então considerada música depravada e de “negros”. Dos diversos apresentadores lembro-me de pelo menos o Jorge Gil, o João David Nunes e o Cândido Mota. Embora possa ter ouvido o primeiro indicativo do programa, o tema “Revenge” dos The Kinks, aquele que verdadeiramente ficou como a marca do programa foi o “Assim falava Zaratrusta” de Richard Strauss, só de o ouvir já se ficava agarrado ao programa. Lembro-me de haver duas emissões, uma das 20H às 22H, julgo eu pois criava conflito com o horário da “Página Um” da RR, e outra das 00H à 01H. A qualidade e actualidade da música passada era efectivamente um dos predicados do programa, sabe-se que temas como “God Only Knows” e “Wouldn’t It Be Nice” dos The Beach Boys foram tocados na mesma altura que foram postos à venda nos EUA e Inglaterra, coisa pouco vulgar para a época em que as novidades chegavam cá com atrasos de longos meses em relação às suas edições nos países de origem. Consta que as tripulações dos voos internacionais colaboravam na aquisição dos discos.

A primeira vez que passaram um tema de música portuguesa foi em 1967 o tema “A Lenda d’El Rei D. Sebastião” do Quarteto 1111. O facto provocou discordâncias no seio dos autores do programa tendo levado à leitura do seguinte texto que não resisto em transcrever:
"Em Órbita vai proceder hoje à transmissão de um trecho de música popular portuguesa. Porque se trata de uma medida sem precedentes neste programa, e por termos o maior respeito pela nossa própria coerência e por todos quantos nos acompanham com a sua adesão consciente e construtiva, tem pleno cabimento algumas palavras introdutórias ao trecho que vamos apresentar. Desde sempre que alguns dos mais conhecidos intérpretes e conjuntos portugueses de música ligeira que nos têm procurado, seguindo modalidades várias de aproximação no sentido de Em Órbita divulgar as suas respectivas realizações, em amostra, em disco ou em registo magnético. Em face dessas sucessivas tentativas, sempre nos recusámos em aludir, por considerarmos que a totalidade dessas realizações não justificava o nosso interesse em abrir excepções, quer por entendermos que a sua transmissão iria ocupar tempo que poderia ser preenchido com larga vantagem pela nossa música habitual, quer por considerarmos que nenhuma delas reunia as condições mínimas para poder representar qualquer coisa de semelhante a uma tentativa honesta e inédita do lançamento das bases da música popular portuguesa que todos nós em boa consciência queremos renovada por inteiro de alto a baixo.
Por várias vezes e sob diversos pretextos temos aqui exprimido alto e bom som que somente transmitiríamos qualquer modalidade de música popular portuguesa que tivesse um mínimo daqueles requisitos que poderemos condensar assim:
1 ° - Autenticidade aferida em função do ambiente e da sociedade portuguesa e da tradição folclórica do nosso país.
2° - Afastamento radical da utilização puramente oportunista de padrões internacionais e pseudo internacionais, impossíveis de transpor com verdadeira honestidade para o nosso meio.
3° - Rompimento frontal com as formas de música popular comercial mais divulgadas em Portugal e que se caracterizam pela teimosa insistência em seguir os figurinos caducos e provincianos de Aranda do Douro, San Remo ou Bênidorm.
4° -Demonstração de um poder criador e interpretativo que ultrapassasse de forma a não deixar dúvidas, apelando a uma imitação grotesca que se faz no estrangeiro, quer na forma de cópia pura e simples, quer na de adaptações apressadas, quer na utilização de uma língua, de um estilo ou de um som de importação, tudo defeituosamente assimilado.
Estes portanto os requisitos mínimos que sempre exigimos a nós próprios e aos que nos procuraram com pedidos de transmissão. Nunca nos limitámos porém a uma recusa seca é peremptória. Os nossos pontos de vista sempre os exprimimos desenvolvidamente em particular e em público.
Os que nos ouvem com regularidade, devem recordar-se do que aqui foi dito sobre este mesmo tema no ano passado. As nossas sugestões sobre os caminhos a seguir na nossa opinião ficaram então bem claras. Recordemos algumas delas:
Recurso ao folclore português nas suas múltiplas variedades e manifestações.
A ligação intima à realidade portuguesa nos seus mil e um aspectos e facetas.
Recurso à poesia portuguesa popular ou erudita, medieval, clássica ou contemporânea.
O aproveitamento das formas melódicas e rítmicas da música popular portuguesa, ainda não adulterada.
A revisão total dos temas e respectiva forma de expressão com base na construção lírica dos poetas da literatura portuguesa, do Cancioneiro Geral de Garcia de Resende aos poetas da actual geração de Coimbra. Sem preocupações de síntese, estas são algumas das formas possíveis no nosso entender de encarreirar a música popular portuguesa para alguma coisa de novo, de verdadeiro e de autentico. Há anos que vimos proclamando. Nunca ninguém demonstrou ou procurou demonstrar que no plano dos princípios e em concreto, estávamos errados.
Posto isto temos, para nós, que o trecho que vamos hoje apresentar, preenche os requisitos mínimos para a sua divulgação por este programa com todas as implicações que a sua transmissão através de Em Órbita acarretam.
Tendo por título A Lenda del Rey D. Sebastião, é escrito por um português é tocado e cantado por portugueses. Não vamos fazer uma apreciação exaustiva desta gravação, das suas qualidades que são muitas, e dos seus defeitos que terá alguns.
Vamos apenas apontar o que nela se nos afigura existir de importante e de novo. Assim é desde logo um apontamento especial sobre os aspectos puramente interpretativos, instrumentais e vocais, e num período em que neste programa se dá cada vez mais importância aos criadores e cada vez menos aos intérpretes, a gravação que vamos apresentar tem qualidade interpretativa mais do que suficiente, e uma nota que sobressai com rara evidencia.
O que neste trecho impressiona mais, o que nele se inclui de mais nitidamente inédito, é que em cima de uma melodia de encantadora simplicidade, há uma história singela, popular, portuguesa, dita em versos directos, certeiros, desenfeitados. Conta-se uma história, uma lenda. Como lenda que é trazida até hoje pela herança popular, pertence ao folclore, ao património mais íntimo da comunidade e dos costumes do nosso país.
Depois, é um tema eterno, de criação nacional e de validade perene e universal. É um Sebastianismo colectivo que na lenda se retrata É a ideologia negativista dos que têm uma crença irracional em coisas, em valores e em poderes que não existem, dos que se deixam enganar pelos falsos Messias do oportunismo e da mistificação. A lenda del Rey D. Sebastião, escreveu José Cid, é o Quarteto 1111."


Não me recordo de ter ouvido esta emissão mas recordo-me perfeitamente da polémica que tal ocasionou.

Era usual no final do ano ser feita a eleição das melhores gravações do ano. Assim, recordo-me por exemplo:
Melhor música de 1969: Atlantis – Donovan
Melhor música de 1970: Bridge Over Trouble Water - Simon & Garfunkel
Pior música de 1970: In the Summertime – Mungo Jerry
Melhor álbum de 1970: Bridge Over Trouble Water - Simon & Garfunkel

Foram inúmeros os grupos e interpretes que aprendi a gostar com o “Em Órbita”, há, no entanto 2 ou 3 recordações que destaco: um longo tema de Brian Auger & The Trinity  que, descubro agora, era "Listen Here" do LP "Befour", o tema “Flatback Caper” do álbum “Full House” dos Fairport Convention e de Simon & Garfunkel “7 O’Clock News/Silent Night” que abria e fechava as emissões do período de Natal de 1970.

Em 1974, o período áureo da música popular anglo-saxónica tinha terminado e "Em Órbita" muda radicalmente de direcção passando a divulgar música antiga e barroca. Mais tarde organiza concertos de música antiga vindo, nos anos finais, a ser patrocinado pela Portugal Telecom.




Em Novembro de 2001 assisti a um desses concertos no Rivoli, a música era de Georg Philip Telemann (1681-1767) e foi interpretada por Reinhard Goebel e a Musica Antiqua Koln. A 29 de Novembro de 2003 realiza-se no Rivoli o último concerto. A PT termina o patrocínio que vinha fazendo há 7 anos. O “Em Órbita” terminava definitivamente.


Dos bons tempos em que ouvia pontualmente "Em Órbita" ficamos com Brian Auger & The Trinity e o tal "Listen Here" o tema que eu costumava ouvir.




Brian Auger & The Trinity- Listen Here

Sem comentários:

Enviar um comentário